
Entrevista com Melissa Couto
Melissa Haigert Couto CRP 07/11075, psicóloga clínica. Formação em Avaliação de Ansiedade e Depressão. Especialista e Pós-graduada em Psicologia das Emergências e Desastres e Apoio Psicossocial e Socorrista (Cruz Vermelha Brasileira/RS). Psicóloga fundadora da RAP - Rede de Apoio Psicossocial. Consultora Surge Capacity da USAID/BHL/LAC Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional de Assistência Humanitária. Atuou no apoio psicossocial na tragédia da Boate Kiss em Santa Maria/RS, na tragédia da Chapecoense/SC, em Brumadinho/MG e Petrópolis/RJ pela RAP em parceria com a SOS Global. Coordenou o trabalho do Apoio Psicossocial à COVID-19 em Lajeado/RS e nas enchentes de 2023 e 2024. Em 2024 nas enchentes do Vale do Taquari fez parte da 1a equipe de Surges Capacty da USAID em resposta em Assistência Humanitária em Desastres no Brasil.
Melissa, como é o trabalho do profissional psicólogo que atua em cenários de desastres?
A atuação do psicólogo em emergências e desastres acontece em consonância com a Política Nacional de Defesa Civil, integrada no plano de contingência pré-existente na proteção e defesa civil de cada município e abordando os aspectos éticos da nossa prática. O trabalho do psicólogo em emergências e desastres acontece no antes, durante e depois do desastre, dentro do ciclo dos desastres atua nas cinco fases. A Lei 12.983/2014 estabelece estas cinco fases: trabalhando com a gestão de risco e o gerenciamento dos desastres, atuando frente ao gabinete de crise na resposta com ações psicossociais desde o apoio a gestão do cuidado, investigando as lacunas existentes e atuando nelas também como um subcomando de análise e execução na resposta rápida e eficaz no território. Diferente do que podem pensar sobre as áreas de atuação do psicólogo em emergências e desastres, há inúmeras frentes, para além do atendimento em comunidade com as pessoas vulneráveis. Atua também na prevenção, mitigação e preparação com psicoeducação, treinamento e capacitação tanto de psicólogos como de outros profissionais, na qualificação para que estes possam acolher a população vulnerável, na avaliação do comportamento humano dos profissionais da linha de frente. E, por fim, na reconstrução com ações de cuidado, restauração de saúde mental da comunidade como um todo e na estruturação da rede para continuidade do trabalho. Há três formas de ações psicossocial: na primária consiste no acolhimento dos desabrigados, em reunir os grupos familiares e atenção básica; na intervenção secundária com o vínculo estabelecido com as pessoas atingidas é realizado o apoio, proteção e escuta; na ação terciária, com um serviço organizado e estruturado é possível receber a população em projetos de continuidade com referência técnica. O psicólogo atua nas intervenções primária e secundária, no momento da crise e na reorganização do processo, chamada de resposta rápida à crise, para ordenar o cenário de caos e depois para amparar e criar uma conduta ou protocolo que funcione para todos os atendimentos. A partir disso, trabalha na frente de gestão para articular os serviços governamentais responsáveis pelo cuidado das pessoas. É necessário e importante que o psicólogo atuando em cenários de desastres receba treinamento e capacitação específicos e tenha conhecimentos de outras áreas, como do funcionamento da defesa civil, da atuação dos bombeiros, para atuar de forma qualificada e ética. Os Primeiros Socorros Psicológicos são um guia/manual de orientações e de técnica utilizados por diferentes profissionais que prestam apoio psicossocial, com nove passos para oferecer um apoio, acolhimento e restauração de forma responsável, humanitária e capacitada.
Como foi a tua experiência de trabalho nas enchentes que assolaram o Vale do Taquari nos meses de abril e maio de 2024?
O trabalho foi desenvolvido inicialmente na resposta rápida do apoio psicossocial com o atendimento imediato breve e focal no momento da crise, em parceria com a saúde e assistência dos municípios no acolhimento das famílias. Dentro do possível, prioriza-se a organização e ordenamento de proteção de resposta, com interesse focado na comunidade, no coletivo, e não no individual, propomos uma visão de mudança na comunidade, de melhora. Nossa atuação foi nos pilares de apoio e amparo, e não de atendimento psicológico, pois é uma proposta de apoio psicossocial neste momento da crise, do desastre, de restauração de saúde mental e não uma área clínica da Psicologia, propõe-se aliviar sofrimento, reduzir danos e retomar o mais rápido possível da normalidade desta comunidade. Outras ações desenvolvidas foram no suporte aos resgates, construção de informação através das listas de resgatados e desaparecidos (um alto fator de apoio psicossocial), triagem médica nas pessoas vulneráveis, apoio aos cadastros, apoio as doações, assim como coordenação do apoio psicossocial dos voluntários da RAP (Rede de Apoio Psicossocial) tanto no trabalho do IML como do Parque do Imigrante em Lajeado/RS.
Como foi realizado o trabalho de psicólogos em abrigos?
Inicialmente o acolhimento se deu a partir dos resgates. As famílias que estavam no aguardo dos seus entes queridos eram amparados pela nossa equipe de voluntários junto com os profissionais da saúde do município, simultaneamente acontecia o acolhimento dos resgatados. Para os abrigados, uma equipe de apoio psicossocial estava continuamente visitando o abrigo e atendendo as demandas existente através de escuta ativa com os primeiros socorros psicológicos. Além disso, foi montado um canil para os animais dos desabrigados terem o cuidado adequado e uma brinquedoteca que funcionaram em parceria com os parceiros voluntários de Lajeado. Depois da resposta rápida (que ocorre por 10 dias), montou-se uma barraca do apoio psicossocial que esteve no Parque do Imigrante até dia 26 de maio, em que foi encerrado o trabalho voluntário da RAP. Esta barraca foi montada pelos profissionais de várias áreas que estavam prestando apoio psicossocial, é um lugar de referência para as pessoas afetadas saibam onde procurar e receber ajuda. Deve-se ter uma escuta sensível e cuidadosa, e há falas que não devem ser ditas, que podem invalidar ou silenciar o sofrimento das pessoas afetadas.
Quais as perspectivas de trabalho e articulação com a comunidade civil, serviços de saúde, prefeituras e defesa civil, em uma região onde enchentes estão se tornando cada vez mais frequentes?
Nós trabalhamos juntos com Defesa Civil municipal sempre, estabelecemos a linha de cuidado unidos às secretarias de saúde e assistência. Tivemos muitos parceiros como ONGs e instituições diversas. Para citar, algumas foram Unilasalle, Cruz Vermelha Brasileira, parceiros voluntários, Conselho Federal e o Regional de Enfermagem, Sociedade Psicanalítica do Rio Grande do Sul (SPRGS), SOS Global, Rotary Club e Matthi Comunicação Integrada.
Tu trabalhas no RAP (Rede de Apoio Psicossocial). Pode nos contar sobre a atuação da equipe/serviço em cenários de emergências e desastres como este que enfrentamos na região?
Sou uma das fundadoras da RAP, ela nasceu em 2019 na missão em Brumadinho/MG. Já trabalho com emergências e desastres desde 2004, e atendi as maiores tragédias do Brasil nesses anos. Quando fixei residência em Lajeado, em fevereiro de 2020, logo eclodiu a pandemia de Covid-19, então digo que cheguei no Vale já trabalhando em emergências e desastres. Entretanto, o que vivemos aqui em setembro de 2023 e em maio de 2024, sem sombra de dúvidas foi muito grande, não só pelo que estamos vivendo de destruição de comunidades inteiras, mas a nível de sofrimento. Não tenho dúvidas de que o trabalho da Psicologia será a médio e longo prazo, processos de trauma e luto estão presentes onde quer que estejamos, as comunidades foram afetadas severamente e a reconstrução será uma grande preocupação para todos os setores, mas as histórias, as memórias, nosso povo, precisarão de muita compaixão e cuidado.
Em 2020 quando tivemos que abrir os trabalhos na pandemia foi montado um call-center na Univates que recebia ligações de pessoas em sofrimento e com dúvidas em relação à pandemia, neste momento foi realizado um treinamento de Primeiros Socorros Psicológicos com um grupo de psicólogos, médicos, residentes do município para atuação, também uma capacitação de profissionais nas UBS para acolhimento de profissionais que estavam na linha de frente. Quando tivemos as catástrofes climáticas em 2023 e em 2024 reunimos esse grupo de voluntários para auxiliar, assim como os parceiros da Unilassale e da Cruz Vermelha e psicólogos de outros municípios do Rio Grande do Sul e Santa Catarina vinculados à RAP vieram até o Vale, Canoas e Porto Alegre para auxiliar pessoalmente ou também via online.
Durante o teu tempo de trabalho frente a cenários de catástrofes e destruição, alguma situação foi mais marcante para ti?
Todas sempre são, porque falam de vidas, de histórias, de sonhos, de perdas, de dor, e mesmo que acreditamos que estaremos preparados, nunca estamos, porque a dor não tem comparação e o sofrimento que acolhemos é muito forte. No momento mais difícil da vida das pessoas nos sentimos impotentes e tentamos amenizar um pouco o seu sofrimento. Estamos lá pela pessoa e para a pessoa, para que minimamente possa ter um lugar seguro para sua dor ser acolhida. Cada história é única e cada momento uma oportunidade de fazer o nosso melhor pelo outro. Agradeço muito cada pessoa que me permitiu acolher sua dor no momento mais difícil de sua vida, é uma honra sempre. Acolhendo a dor de tantos que ressignifico as minhas. A tragédia da Boate Kiss foi a primeira grande tragédia em que eu atendi, na minha cidade, e perdurou por muito tempo, entretanto eu não havia visto algo igual como a que vivemos em setembro e agora em maio novamente. Aqui no Vale está sendo mais desafiadora e nos deixa com um sentimento de impotência, e também alguns atravessamentos podem impactar o bom funcionamento do nosso trabalho.
Texto publicado na seção Entrevista d'A Gazeta n23, publicação trimestral interna da Constructo Instituição Psicanalítica. Disponível online, clique aqui.