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O artesão e suas lembranças

            Viajar fisicamente para um lugar de carinho, refazer caminhos e percorrer ruas há anos não explorados nos faz também revisitar memórias. Tais lugares, por vezes estão entremeados profundamente em nossas recordações, como se tivessem sido esquecidos. Mas estão lá. Só precisam do incentivo certo: um cheiro, uma música, uma risada, o acontecer de determinados fatos encadeados uns nos outros. É o suficiente para desencadear do lado de dentro uma série de memórias afetivas, de lembranças que pareciam destinadas ao recanto mais escuro e inabitável, mas como por um fio, foram puxadas de volta.

            Esse fio condutor da memória para a superfície traz junto consigo vestígios do que foi vivido em um tempo pretérito. Andar de bicicleta, passear a cavalo, ajudar os pais ou avós na lida dos animais, pular as ondas da praia, viajar de carro cantando músicas antigas ou contando piadas e inventando brincadeiras para passar o tempo, colar figurinha de futebol. Justamente porque esse tempo pretérito é imperfeito e carrega sentimentos e marcas de uma infância ou adolescência que pode ter sido regada de boas risadas, brincadeiras e amparo, ou revelar sensações de estranhamento, saudade, culpa ou até raiva. Não é fácil acessar o fio condutor de memórias ou revivê-las. Abrir portas emperradas e acessar cômodos empoeirados pode ser assustador ou intimidador. Se eu desenrolar mais esse fio o que será que vou encontrar do outro lado da porta? O que saberei de mim mesmo se eu pensar mais sobre mim? O que eu faço com esse monte de pergunta e de sentimento que eu estou sentindo quando eu lembro de tudo isso? E agora?

            Agora, saber um pouquinho mais sobre si mesmo, de um lado pode ser sim intimidador, assustador ou trazer à tona um sofrimento (des)conhecido. Apropriar-se de si mesmo, abrindo portas de cômodos estranhamente familiares, seja vivendo no hoje o que já foi um dia recordação, é permitir-se olhar para esse aparente lugar agradável e sossegado, limpar as teias de aranha e organizar os móveis de outra maneira. Abrir espaço interno para criar, desconstruir e/ou construir novos significados dessas marcas ou recordação que emergiram. É uma oportunidade de, ao revisitar estas recordações, dar novas roupagens a um passado que se fez presente, se permitir dar voz a o que esses sentimentos querem dizer, ser artesão e costurar as lembranças e os sentimentos, elaborando a sua obra-prima. Aquele sufoco de lembrar de tudo também pode ser um sufoco de viver num automático e num lugar de sofrimento disfarçado de comodismo.

            É um paradoxo: não olhar não faz sumir, não lembrar não quer dizer que esqueceu, saber mais não significa que sabe tudo. Saber mais, entretanto, nos coloca num lugar de disponibilidade interna para saber que não se sabe de tudo, mas que deseja saber um pouco mais de si. E viajar para dentro de si é trabalhoso, mas sobretudo libertador, um lugar de capitania do próprio barco. Tecer com os fios da sua própria história.

Texto publicado originalmente na edição impressa do dia 30.07.2024 no Jornal A Hora (Lajeado/RS), a versão PDF encontra-se aqui.

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